Os leitores mais assíduos do Outras Escritas devem lembrar-se de um artigo que aqui publiquei com a minha crítica à ópera Orquídea Branca, cuja estreia mundial ocorreu no Funchal no final de Outubro do ano passado.
Publiquei também essa crítica no outro meu blogue de nome Bel canto Opera.
Pois bem, o Maestro Jorge Salgueiro, compositor da Orquídea Branca, leu a minha crítica no Bel canto Opera e teve a amabilidade de me responder. Escusado será dizer que é para mim uma honra que o Maestro tenha lido a crítica e que tenha respondido.
Aqui fica de novo o meu texto e a reposta do Maestro.
Assisti ontem a uma récita da ópera Orquídea Branca que estreou no Funchal no dia 27 de Outubro.
As expectativas eram altas, uma vez que as notícias e críticas que foram surgindo na comunicação social eram bastante positivas.
Afortunadamente tive acesso a um bom lugar no teatro, que permitiu ter uma visão completa de palco e que, supostamente, será um bom local em termos acústicos. Digo supostamente porque foi utilizada amplificação acústica para vozes solistas e orquestra. Este foi, a meu ver o maior "senão" de todo o espectáculo. Os cantores de ópera não usam microfones nos teatros de ópera. Uma das características mais importantes de um cantor é a capacidade de projectar a voz.
Sei que a acústica do Baltazar Dias não é das melhores, de qualquer forma a acústica poderia ter sido melhorada recorrendo a artifícios de palco.
Tudo isto para dizer que a minha opinião sobre os cantores fica imediatamente comprometida por ouvi-los todos com o mesmo volume sonoro.
Mas antes disso, gostaria comentar a ópera em si.
O libreto de João Aguiar é interessante. Uma história de amor entre uma princesa e um jardineiro. A princesa chega ao Funchal para se curar de febre tísica, mas no final sucumbe. Tipicamente uma ópera romântica.
A encenação do Miguel Vieira é, para mim, um dos pontos altos desta produção. Os cenários e figurinos estão muito bem conseguídos. A conjugação do antigo com o novo e do tradicional com o moderno está perfeita.
A composição de Jorge Salgueiro não me satisfez completamente. A utilização excessiva de "staccato" nos recitativos, não é agradável. Esta característica mantém-se ao logo do toda a obra, mesmo nas árias duetos e tercetos, tornando-a pesada e um pouco monótona. No entanto, os coros, o dueto entre Maria Amélia e José Maria e as duas árias de José Maria fogem a esta regra e são as partes que mais apreciei.
Na generalidade a composição parece-me excessivamente ligeira, o que, muitas vezes ao longo do espectáculo, me levou a pensar que estava a assistir a um musical e não a uma ópera.
Finalmente as vozes.
Como já referi, a utilização de amplificação não me permite formar uma opinião comparativa entre potência e projecção vocais.
As vozes de Lúcia Lemos (Imperatriz), Rui Baeta (Zé Maria) e Carlos Guilherme (cónego) são de destacar. De entre os três, preferi Lúcia Lemos (soprano), com uma voz segura e encorpada, mas que infelizmente não tem, nesta obra, uma ária à sua altura. Mesmo assim, destacou-se especialmente no segundo acto.
Rui Baeta (barítono) esteve bem. Entrou um pouco a medo no registo agudo, mas melhorou bastante no segundo acto. De notar que a personagem do José Maria tem as duas mais belas árias de toda a ópera.
Carlos Guilherme /tenor) esteve um pouco contido no primeiro acto, melhorando bastante depois. De qualquer forma, a sua personagem não tem também uma ária onde os dotes vocais do cantor possam ser convenientemente demonstrados.
Carla Moniz (soprano) no papel principal de D. Maria Amélia (princesa) teve uma prestação mediana. Pouco comovente. Uma voz contida e ligeira. Confesso que desconhecia a cantora e que esta apreciação se pode dever à interpretação que fez da personagem.
Dos solistas secundários destaco Diocleciano Pereira (tenor) no papel de Comandante da Fragata Dom Fernando e Inês Madeira (mezzo-soprano) no papel de Rosinha.
Globalmente considero a produção da Orquídea Branca muito aceitável.
Vale a pena ver.
Caro Alberto, sou o Jorge Salgueiro, precisamente o compositor da Orquídea. Parabéns pelo seu artigo que considero interessante. Em relação às suas considerações de gosto, nada a dizer. Gostos não se discutem e tem todo o direito em exprimir os seus, não só em relação à música como à prestação das vozes. Referiu o trabalho do encenador Miguel Vieira que também sublinho e não posso deixar de explicitar o nome da figurinista Dina Pimenta que fez um trabalho de grande interesse artístico. Compreendendo que opta por uma visão literalmente artística sem tomar em consideração as circunstâncias julgo no entanto que seria de louvar a excelente prestação da orquestra, coros, bailarinos e produção do GCEA. Notáveis dentro das circunstâncias. Considero no entanto que o seu reparo em relação aos microfones é injusto. Em primeiro lugar porque nós somos os primeiros a reconhecer que numa ópera um dos factores de avaliação de uma voz é precisamente a sua capacidade de projecção e que esse factor influencia o timbre, o corpo da voz, a personagem, etc. Não faço conjecturas sobre a imagem que tem de mim como artista, mas não o imagino a ver o Carlos Guilherme, a Lúcia Lemos e o Rui Baeta a aceitarem de bom grado cantarem com micros. Simples é de imaginar que foi uma decisão muito ponderada e difícil que tive de tomar e que todos verificámos como inevitável. De facto não é possível fazer chegar as palavras ao público quando a orquestra está no meio dele. Lembro-o que eu dirigia praticamente a meio da 1ª plateia naquilo que seria a 5ª fila de cadeiras, isto se não tivessem sido retiradas as duas primeiras precisamente para ser colocada a orquestra. Já tinha visto isto em algum lado? E estamos a falar de uma orquestra com menos de metade dos efectivos de qualquer orquestra de ópera a partir do período romântico. É um problema que me parece neste teatro impossível de ultrapassar a não ser que colocássemos a orquestra no palco. Não quero ser irónico mas de facto, com a estrutura desta ópera, teriam os bailarinos e os coros vir para a sala. Os tais artifícios que me fala para resolução do problema, imagino que sejam superfícies reflectoras. Ora isso é absolutamente impossível dado que o proscénio é já dentro da sala. Não sei se reparou, o 1º trombone tinha a campânula ao lado das cabeças das pessoas da 1ª fila. Uma concha acústica, como imagina, também não é possível numa ópera: necessitamos da teia. Tudo o que era cantado dentro do palco era "comido" pela caixa que é a teia. Esta ópera ali é como meter a Rua da Prata na Rua da Betesga. Acho que a solução a que se chegou é bem razoável. Aliás, corrija-me se estiver errado, no Funchal não há teatros com fosso e condições para uma grande produção operática. Talvez este assunto possa merecer reflexão quando um dia se construir outra sala de espectáculos na cidade. A outra questão que levanta e que me parece merecer alguma reflexão é a qualificação ópera ou musical. O primeiro aspecto que nos pode ajudar a discernir a questão é a existência de momentos falados. A Orquídea é toda cantada. Ora a Flauta Mágica, que nós sabemos foi escrita como um Singspiel e não uma ópera, é hoje aceite genericamente como uma ópera. Muitos outros exemplos poderíamos aqui dar e até a existência de longas partes faladas em óperas contemporâneas de vanguarda só ajudam a complicar. O factor que me parece decisivo é a questão estética. Um musical deriva em, geral de duas tradições: a americana e a inglesa. No caso americano a raiz é de influência jazzística e assente em pilares como Gershwin e Weill. No caso inglês a influência é do rock e da pop, e a maior referência parece-me ser ALWebber. No caso da ópera, as raízes têm origem em movimentos artísticos ainda que os autores busquem sempre uma linguagem própria. Na ópera existe sempre a busca do artifício, da estilização, de uma nova linguagem em busca de novos códigos para decifrar o futuro da vida e da arte. É essa a palavra chave: artifício. O musical não tem esse tipo de preocupações e enquadra-se mais frequentemente dentro de estereótipos. Daqui se compreende que já no séc. XXI se continue a não utilizar o microfone nas vozes operáticas: a sua utilização normaliza alguns aspectos do canto. Salvaguardo projectos de vanguarda que são compostos já prevendo a amplificação e utilização dessa tecnologia como meio de expressão. Isso nós conhecemos. A linguagem da ópera é mais estruturada exactamente porque busca essa nova síntese artística, essa nova proposta estética. Ao ouvirmos o primeiro Wagner podemos já descortinar aquilo que viria a ser a sua linguagem tão própria e revolucionária para as artes, mas de facto podemos nessa primeira fase ouvir claras influências de compositores românticos seus predecessores ou contemporâneos. Assim, não posso deixar de considerar que “A Orquídea Branca” é de facto uma ópera. Não que considere a classificação de musical menos digna, de facto já escrevi um musical e por isso estou à vontade. Esta obra enquadra-se perfeitamente no movimento minimalista em termos estruturais e procura a sua identidade e libertação através da proposta melódica. Se por um lado, o desenvolvimento a partir da repetição e de células simples na parte orquestral se enquadram perfeitamente em influências de compositores minimalistas, por outro a solução melódica é bem mais original, embora se possam encontrar influências da Pop e da música tradicional (a minha linguagem parte para uma nova proposta a partir de uma síntese). Julgo ser precisamente essa generosidade melódica que o confunde, algo que compreendo perfeitamente dado a repulsa que esse aspecto tem tido junto dos criadores e principalmente da crítica artística dos últimos 50 anos (número redondo e discutível). O trabalho que realizei em torno da língua portuguesa jamais seria aceitável num musical. A desconstrução da palavra em torno da caracterização psicológica das personagens, fazendo-nos ouvir aquilo que elas pensam e não aquilo que elas dizem, é algo que atravessa a ópera de uma forma estrutural e da qual faz parte os staccati de que, com todo o direito, não gostou. Foi a opção estética que me pareceu mais adequada entre a minha linguagem e as circunstâncias culturais do local e tempo. Se voltasse atrás, ainda que sabendo o que sei hoje, julgo que não conseguiria fazer tão bem. Termino agradecendo-lhe a sua atenção e com uma palavra de estímulo para que continue a assistir e a escrever sobre a criação contemporânea que tão necessitada está de discussão, pensamento, polémica, divulgação, enfim, interesse do público.
Bem, é melhor descer ao mundo dos mortais e deixar-te este desafio que igualmente me fizeram (As Três Mentiras) no meu blog e ao qual também gostaria que respondesses.
ResponderEliminarVai lá espreitar.
;)
Abraço
Daniel