João fecha o livro com uma lágrima no canto do olho. Tem 10 anos, adora ler e... nunca viu o mar. Gosta de livros de aventuras, de piratas, de marinheiros. Gosta de Júlio Verne e devorou as "20 000 Léguas Submarinas", sempre sonhou comandar o "Nautilus" e... nunca viu o mar.
João nasceu no meio de uma família pobre no interior de Portugal, num tempo em que as pessoas não podiam falar de tudo. Havia uns senhores de fatos escuros e carros pretos que levavam os homens que ousavam falar de uma coisa a que chamavam "liberdade" e que o João nunca entendera bem o que é. Alguns desses homens, amigos de seu pai, nunca mais tinham voltado à aldeia. João imaginava que teriam partido em busca da "liberdade" de que tanto falavam. Mal sabia o João...
"Avô, o que é a liberdade?"
"Porque é que o Zé da Ti Joana, foi no carro preto e nunca mais voltou? Foi à procura da liberdade?"
Todas estas perguntas ficavam para o João sem resposta. Mas na sua mente o conceito de liberdade estava relacionado com o mar. Porquê? Porque nos livros que lia os marinheiros e os piratas viviam livremente, navegando por mares infinitos ao sabor dos ventos e das correntes.
Mas o João... nunca viu o mar.
"Avô, como é o mar? É azul, é verde? É grande?"
"Avô, o mar não tem fim? Porque não chega o mar aqui à aldeia?"
Tantas perguntas e tão poucas respostas. O avô, homem rude e de poucas falas, é com quem o João mais gosta de estar, depois de sair da escola e enquanto os seus pais não chegam exaustos, do trabalho no campo. João fala muito e o avô fala pouco. Entendem-se, por isso, muito bem.
"João, não faças tantas perguntas e vai dar milho às galinhas e aos patos" - é muitas vezes a resposta do avô.
João é um sonhador, sonha com a "liberdade" que não sabe bem o que é, e sonha com o mar de que falam os livros que o professor Martins lhe empresta. Sim, porque se não fosse o professor Martins, nunca teria lido um livro.
"Senhor professor, como é o mar?"
"É grande? Azul ou verde?"
"O mar, João, o mar tem muitas cores. É azul, é verde, e de ouro ao pôr-de-sol..."
"Um dia vou ver o mar. Vou ser marinheiro e nunca hei-de voltar a terra..."
João cresce, torna-se um homenzinho. Tem jeito para os estudos e fez a quarta classe sem problemas. Com bastante sacrifício dos pais, foi para o liceu na cidade mais próxima e terminou o sétimo ano com distinção. Mas, nunca viu o mar...
Um dia, pouco tempo depois de ter completado 18 anos, chega a sua casa uma "Guia de Marcha". Está na altura de cumprir o seu dever para com a Pátria e partir para o serviço militar. São precisos homens para a Guerra do Ultramar e João é forte e sente vontade de cumprir o seu dever. Mal sabe o João...
Depois de uns meses de tropa, passados quartel de uma cidade próxima da sua aldeia, João recebe a notícia de que terá que partir para o Ultramar. Vai para Angola, mas isso não lhe importa. João tem 18 anos e vai finalmente ver o mar... Que lhe importa a guerra? Não tem medo. Vai ver o mar...
O dia chega. Parte de comboio para Lisboa. Depois a pé para o cais. Vê o rio! É grande, mas não é o mar! O barco. Confusão... Tanta gente. Uns partem, outros ficam... As mãe choram...
João, começa a compreender que há algo naquelas despedidas que não está certo. Sabe que algures nos campos da sua aldeia também a sua mãe chora pela sua partida.
"Uma mãe nunca deveria ter que chorar pelo seu filho" - pensa João enquanto embarca. Fica triste. Tão triste que até se esquece que vai ver o mar.
Ao passar a barra do Tejo o mar surge finalmente. Não é verde nem azul. É cor de chumbo! Chove muito! João chora. Sente saudades de todos e não sabe o que vai encontrar do outro lado do mar, que afinal parece não ser nem verde, nem azul!
Voltou dois anos mais tarde, são e salvo para alegria de todos. Lutou numa guerra estúpida e sem sentido, mas que finalmente tinha acabado. Mudou muito. Tornou-se um homem. Compreendeu quem eram os senhores de fato escuro que andavam nos carros pretos. Compreendeu o que era a liberdade...
Uma coisa, no entanto, não mudou no João. A sua atracção pelo mar, que, embora se lhe tenha apresentado cinzento na primeira vez que o viu, depressa se lhe mostrou de todas as outras cores e com todos os seu encantos.
João vive hoje em Itália. É comandante de um dos maiores navios de cruzeiro do mundo... Vive do mar e para o mar. É feliz! Ainda lê Júlio Verne...
Texto de minha autoria, escrito para a Fábrica de Histórias
os amigos do Pai do João iam no carro preto ver o mar...nunca ninguém disse isso ao rapaz?
ResponderEliminarmuito bem... mais uma história.
ResponderEliminargostei ;)
Boa Alberto, gostei da história. Temos escritor?
ResponderEliminarTardou a entrar na Fábrica, mas stá a entarar em grande...
ResponderEliminarObrigado pela vossas mensagens...
ResponderEliminarConfesso que a história da semana passada foi mais fácil. Esta com base numa fotografia do mar, obrigou-me a puxar mais pela imaginação. Mas, como diz a Reflexos, é esse mesmo o desafio da Fábrica de Histórias.
Olá.
ResponderEliminarEstive uns dias sem vir aqui, pelo que,só hoje li a história do João e gostei muito. Concordo com 3RRR, temos escritor.Eu afirmo.
Adorei está história.
ResponderEliminarNem tenho palavras para grandes obras.
Meus sinceros parabéns continue assim.