terça-feira, 18 de maio de 2010

Terça, Flashback VIII (Londres, 13 de Agosto de 2101)

Relembro hoje na rubrica Terça, Flashback, a primeira história que escrevi para a Fábrica de Histórias e que intitulei - Londres, 13 de Agosto de 2101.

Esta história foi publicada no segundo volume da Fábrica que se encontra disponível para compra na loja da editora Autores.


Jorge chega a casa depois de mais um dia de trabalho estafante. Estaciona o veículo de transporte e olha em volta para um jardim completamente seco. Vive naquela casa há mais de quarenta anos, mas não consegue habituar-se ao seu jardim seco. Desde 2086 que a água começou a ser racionada. Primeiro só durante umas horas por dia, geralmente durante o horário de trabalho, mas depois os períodos de racionamento foram aumentando e hoje em dia o abastecimento de água está disponível apenas uma hora por dia. Entre as 7 e as 8 da manhã. Dá para tomar um duche, não dá, evidentemente para beber. Água potável, só mesmo nos estabelecimentos próprios e a um preço cada vez mais elevado.

Ao subir a escada que conduz à porta de entrada, Jorge, descendente de portugueses que partiram para Londres quando ainda era uma criança, recorda o seu jardim de outros tempos, florido e verde, com água abundante, sistemas de rega automática que ligavam e desligavam depois de analisarem as condições atmosféricas, estufas que se elevavam automaticamente quando as noites se tornavam demasiadamente frias para as suas plantas tropicais.

“É melhor esquecer” - pensa Jorge enquanto olha para a pequena câmara de vídeo, que faz um “scan” completo ao seu corpo e lhe abre a porta com um “Olá Jorge bem vindo a casa”. Tem que desligar aquela Voz Irritante que lhe dá sempre as boas vindas e que o persegue pela casa, relembrando-o dos seu afazeres diários. Jorge tem 70 anos e começa a perder a paciência para algumas destas coisas, a que costuma chamar “modernices”.

“Será que a Ana está em casa?” - pensa Jorge. Olha para o relógio, faz as contas ao fuso horário e conclui que Ana deve estar já levantada. São casados quase há 30 anos e nunca viveram juntos. Encontram-se apenas uma vez por ano, fisicamente pelo menos. “Ciberneticamente” encontram-se quase todos os dias.

- Voz Irritante, verifica se a Ana já acordou e se pode falar comigo.

Voz Irritante é o nome que Jorge resolveu dar à sua assistente cibernética que o persegue pela casa. A Voz reponde que Ana já está acordada e que podem falar.
Jorge olha para o ecrã e lá está Ana à sua espera.

-Hoje não estás com bom aspecto, já bebeste o teu copo de água? - diz Ana que está sempre preocupada com a saúde de Jorge.

- Não. Vou beber daqui a pouco, não te preocupes.

-Está bem! A água é importante, Jorge sabes disso. Como foi o teu dia?

-Quase tão rotineiro como todos os outros. Não parece haver solução para o problema da água. Conseguimos isolar uma pequena quantidade livre de qualquer contaminação, mas os custos associados ao processo são tão elevados que não nos permitem partir para produções em grande escala. Tu como estás? Pareces um pouco abatida.

- A água Jorge! É sempre a água. Por aqui quase não se consegue um litro por semana. Não posso beber um copo todos os dias...

- Não percas a esperança, minha querida Ana...

- Não perdi! Vou sair, Jorge, já estou um pouco atrasada. Adeus meu querido, uma boa noite. Falamos amanhã.

Desligam. Jorge sente-se profundamente triste. Tem saudades de Ana. Do seu corpo, dos seus carinhos e da sua presença. “Tocam-se” ao fim de semana, quando resolvem vestir os fatos cibernéticos, mas esta solução nunca lhe lhe agradou inteiramente.
Sonha com as férias que ainda estão distantes...

Perde-se nos pensamentos...e então... então tem uma ideia para mais um processo de purificação de água. Fica animado. Talvez seja só mais uma ideia que não dará em nada, mas como cientista, tem que tentar. Sabe que um dia poderá salvar o mundo.

Hoje Jorge vai dormir um pouco melhor...

Londres 13 de Janeiro de 2101 (preço de 1 litro de água potável 562,23 €)

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