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terça-feira, 18 de maio de 2010

Terça, Flashback VIII (Londres, 13 de Agosto de 2101)

Relembro hoje na rubrica Terça, Flashback, a primeira história que escrevi para a Fábrica de Histórias e que intitulei - Londres, 13 de Agosto de 2101.

Esta história foi publicada no segundo volume da Fábrica que se encontra disponível para compra na loja da editora Autores.


Jorge chega a casa depois de mais um dia de trabalho estafante. Estaciona o veículo de transporte e olha em volta para um jardim completamente seco. Vive naquela casa há mais de quarenta anos, mas não consegue habituar-se ao seu jardim seco. Desde 2086 que a água começou a ser racionada. Primeiro só durante umas horas por dia, geralmente durante o horário de trabalho, mas depois os períodos de racionamento foram aumentando e hoje em dia o abastecimento de água está disponível apenas uma hora por dia. Entre as 7 e as 8 da manhã. Dá para tomar um duche, não dá, evidentemente para beber. Água potável, só mesmo nos estabelecimentos próprios e a um preço cada vez mais elevado.

Ao subir a escada que conduz à porta de entrada, Jorge, descendente de portugueses que partiram para Londres quando ainda era uma criança, recorda o seu jardim de outros tempos, florido e verde, com água abundante, sistemas de rega automática que ligavam e desligavam depois de analisarem as condições atmosféricas, estufas que se elevavam automaticamente quando as noites se tornavam demasiadamente frias para as suas plantas tropicais.

“É melhor esquecer” - pensa Jorge enquanto olha para a pequena câmara de vídeo, que faz um “scan” completo ao seu corpo e lhe abre a porta com um “Olá Jorge bem vindo a casa”. Tem que desligar aquela Voz Irritante que lhe dá sempre as boas vindas e que o persegue pela casa, relembrando-o dos seu afazeres diários. Jorge tem 70 anos e começa a perder a paciência para algumas destas coisas, a que costuma chamar “modernices”.

“Será que a Ana está em casa?” - pensa Jorge. Olha para o relógio, faz as contas ao fuso horário e conclui que Ana deve estar já levantada. São casados quase há 30 anos e nunca viveram juntos. Encontram-se apenas uma vez por ano, fisicamente pelo menos. “Ciberneticamente” encontram-se quase todos os dias.

- Voz Irritante, verifica se a Ana já acordou e se pode falar comigo.

Voz Irritante é o nome que Jorge resolveu dar à sua assistente cibernética que o persegue pela casa. A Voz reponde que Ana já está acordada e que podem falar.
Jorge olha para o ecrã e lá está Ana à sua espera.

-Hoje não estás com bom aspecto, já bebeste o teu copo de água? - diz Ana que está sempre preocupada com a saúde de Jorge.

- Não. Vou beber daqui a pouco, não te preocupes.

-Está bem! A água é importante, Jorge sabes disso. Como foi o teu dia?

-Quase tão rotineiro como todos os outros. Não parece haver solução para o problema da água. Conseguimos isolar uma pequena quantidade livre de qualquer contaminação, mas os custos associados ao processo são tão elevados que não nos permitem partir para produções em grande escala. Tu como estás? Pareces um pouco abatida.

- A água Jorge! É sempre a água. Por aqui quase não se consegue um litro por semana. Não posso beber um copo todos os dias...

- Não percas a esperança, minha querida Ana...

- Não perdi! Vou sair, Jorge, já estou um pouco atrasada. Adeus meu querido, uma boa noite. Falamos amanhã.

Desligam. Jorge sente-se profundamente triste. Tem saudades de Ana. Do seu corpo, dos seus carinhos e da sua presença. “Tocam-se” ao fim de semana, quando resolvem vestir os fatos cibernéticos, mas esta solução nunca lhe lhe agradou inteiramente.
Sonha com as férias que ainda estão distantes...

Perde-se nos pensamentos...e então... então tem uma ideia para mais um processo de purificação de água. Fica animado. Talvez seja só mais uma ideia que não dará em nada, mas como cientista, tem que tentar. Sabe que um dia poderá salvar o mundo.

Hoje Jorge vai dormir um pouco melhor...

Londres 13 de Janeiro de 2101 (preço de 1 litro de água potável 562,23 €)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Fábrica de Histórias 3


Já foi publicado o terceiro voluma da Fábrica de Histórias, que, mais uma vez, tem algumas histórias da minha autoria (publicadas aqui no Outras Escritas).

Pode ser comprado aqui.

sábado, 1 de agosto de 2009

Fábrica de Histórias

Já falei várias vezes da Fábrica de Histórias aqui no Outras Escritas. Mais que "falar", já escrevi aqui algumas histórias para a dita fábrica, de acordo com o tema com que todas as semanas os seus "donos" desafiam os escritores.

O segundo volume da Fábrica de Histórias já está à venda há um tempo, mas fiquei hoje a saber que incluí duas das minhas histórias (pensei que tal só aconteceria no terceiro volume).

Estreio, assim, mais cedo do que estava à espera, a minha carreira de escritor (risos).

São apenas duas pequenas histórias, mas o facto de se encontrarem publicadas em livro é muito significativo para mim.

Os interessados, podem comprar o livro aqui.

domingo, 21 de junho de 2009

Decidir ser feliz

Teresa e António eram o que geralmente se considera um casal perfeito. Tinham-se conhecido numa festa da universidade onde ele estudava engenharia e ela línguas e literaturas modernas e, coisa rara nos dias de hoje, apaixonaram-se de imediato.

Encontram emprego facilmente logo que concluíram os estudos e, assim que juntaram algum dinheiro resolveram casar. Os pais de ambos, de origens humildes, tinham concretizado os sonhos de uma vida. Os seus filhos tinham tirado um curso superior e agora iam casar e formar família.

Com o fruto do seu trabalho, Teresa e António, conseguiram comprar uma boa casa e um carro para cada um.

Um curso, um bom marido, emprego, casa e carro são ingredientes que devem fazer qualquer mulher feliz. Qualquer mulher, mas não Teresa. Na verdade, tinha passado pouco mais de um ano sobre a data do casamento e começava a sentir-se presa e a aperceber-se que havia muitas coisas que não tinha tido oportunidade de fazer e que agora estavam completamente comprometidas.

Pensava que ter um filho seria vantajoso para si, uma vez que a criança poderia preencher o enorme vazio que sentia, no entanto, não se sentia preparada para ser mãe e resolveu esperar.

Casa trabalho, trabalho casa, fins de semana em casa dos pais ou dos sogros e férias no Algarve ou no sul de Espanha. Foi assim que se passaram um ano atrás do outro.

Sentada agora na sala de espera daquele hospital frio e com pouca luz, Teresa revia agora toda a sua vida com uma perspectiva completamente diferente. De repente tornou-se necessário fazer tudo muito mais depressa porque a partir deste momento a vida já não lhe permite adiar decisões ou manter situações que não a façam feliz.

Teresa tem cancro e menos de um ano para viver.

Sente-se infeliz? Não. Sente medo? Sim. Sabe que vai sofrer, mas, no entanto, o cancro tornou-a de um momento para outro uma mulher muito mais decidida.

Vai enfrentar tudo e todos e ser feliz no tempo que lhe resta porque afinal a felicidade não dura muito, mas a sua vida também não.

Texto de minha autoria, escrito para a Fábrica de Histórias

domingo, 14 de junho de 2009

O Velho Banqueiro

O Velho Banqueiro vive há mais de quarenta anos no velho palacete de Sintra. Começou pobre, subiu a pulso e fez uma brilhante carreira. Hoje é rico, é muito rico, e o velho palacete de Sintra é uma das suas maiores conquistas. Nunca casou porque não teve tempo. Viveu do trabalho e para o trabalho.

Apesar de ter levado uma vida solitária, o Velho não vive só no velho palacete. O seu único sobrinho, um dos seus afilhados e as respectivas esposas vivem consigo e às suas custas. São boémios, inúteis e carácter é coisa que não sabem bem o que é. Não gostam do Velho, nem fazem grande questão de demonstrar por ele algum afecto.

O Velho nunca foi dado a grandes sentimentos e, por isso, considera a presença dos dois casais como um mal necessário. Encontram-se apenas para jantar e, nessa altura, mantêm quase sempre silêncio.

Entre si, os dois casais mantêm uma amizade de conveniência. O seu objectivo é comum, ficar com a fortuna do velho depois dele morrer. É isso que consta no testamento e, por isso, resta-lhes esperar. O Velho tem oitenta e cinco anos e não durará muito mais tempo. Ou durará?

'Talvez dure'- pensam em conjunto. 'O odioso Velho, faz caminhadas e natação todas as manhãs e parece estar teso como um pêro. Não será melhor apressar as coisas?'

Combinam entre si colocar umas gostas de arsénico na água do jantar. Já ouviram falar que o envenenamento por arsénico é quase indetectável. 'Não vai morrer logo, mas sempre se apressam as coisas.'

O acesso à água que o Velho bebe é muito fácil, uma vez que o Mordomo coloca sempre a bandeja com as bebidas no aparador traseiro enquanto se dirige à cozinha para dar a últimas indicações sobre o jantar. Uma das esposas entrará na sala de jantar, precisamente quando o mordomo sair e colocará umas gostas de veneno no copo. O copo do Velho também é fácil de identificar, é sempre o que está mais à esquerda uma vez que ele exige ser o primeiro a ser servido.

Iniciam o esquema planeado. É tudo muito fácil, O Velho e o Mordomo não dão por nada. Basta esperar resultados.

Passa um mês, passam dois meses, três, quatro e... nada acontece. O Velho continua com os mesmos hábitos e com uma saúde de ferro. 'Estará a fingir que está bem de saúde?' - pensam ao ver que o seu plano parece não estar a dar resultados.

Porém, há um dia em que o Velho não aparece para tomar o pequeno almoço às sete e trinta, como é seu hábito. Às oito o Mordomo sobe ao quarto para encontrá-lo em cima da cama com um tiro na cabeça. O revólver está na sua mão direita. O Velho suicidou-se. Será?

Ao funeral segue-se a leitura do testamento. Ao Sobrinho e ao Afilhado o Velho deixa apenas o suficiente para que vivam bem até ao fim dos seus dias. O resto dos bens e fortuna ficam para o seu fiel Mordomo.

Más notícias, não é possível que o Velho lhes tenha feito tal. O Sobrinho sente-se mal, desmaia e é conduzido ao hospital. Fazem-se exames médicos. Parece que não foi apenas um desmaio devido à emoção. Mais exames médicos concluem que tem cancro sem quaisquer possibilidades de cura.

A polícia investiga o eventual suicídio do Velho e descobre vestígios de arsénio num copo usado no jantar do dia anterior. Uma análise à impressões digitais presentes no copo leva a concluir que o mesmo foi utilizado pelo sobrinho. Há no entanto uma dúvida. 'Porque razão foram todos os copos lavados menos o que continha vestígios de arsénico?'

As investigações prosseguem e as novas análises médicas feitas ao Sobrinho concluem que o seu estado de saúde se deve a envenenamento por arsénico. As esposas e o Afilhado são acusados e condenados por tentativa de envenenamento. A pena agrava-se quando um mês mais tarde o Sobrinho acaba por morrer.

O Mordomo, agora senhor do velho Palacete de Sinta, continua a administrar os bens que um dia foram do Velho.

Quanto ao suicídio, ainda hoje constitui um mistério, mas houve alguém que lucrou imenso com ele...

Texto de minha autoria, escrito para a Fábrica de Histórias

domingo, 7 de junho de 2009

Luana

Luana acorda assustada com o barulho de um carro que acaba de estacionar bem perto do local onde dorme. Esconde-se como pode no interior da sua caixa e não faz o mais pequeno ruído. Consegue ser quase invisível quando eles vêm, olham, revolvem as caixas e os cobertores e depois levam as raparigas mais velhas e mais bonitas.

Não faz a mínima ideia para onde as levam e muito menos os que lhes fazem, mas sabe que não é coisa boa.

Um deles passa muito perto da sua caixa. Luana treme, fica em silêncio mas o seu coração palpita, parece que lhe vai sair pela boca. 'Será que me vão descobrir? Não quero que me levem...'. Ouve os passos afastarem-se e fica mais tranquila. Ainda não foi desta vez...

Não ouve mais barulhos. Sai da caixa. Tem sede. Olha para o local onde deixou a sua garrafa de plástico, mas não a encontra. Roubaram-lhe a sua água. Pode ser que com sorte consigo hoje ainda consiga beber qualquer coisa.

Está calor, muito calor...

O barulho dos carros em cima da ponte é ensurdecedor. Tem que sair do seu abrigo e pôr-se a caminho para a cidade.

Inicia a longa caminhada. Está descalça. Tinha uns sapatos que lhe tinha dado uma senhora da cidade, mas foram-lhe roubados por alguém do abrigo.

Caminha pesadamente na berma da estrada de terra. Os carros passam muito perto de si. Há muito pó. Luana tosse. Tem sede, tem muita sede...

Chega à cidade. Pessoas de um lado para o outro, muito movimento, muita gente bonita e bem vestida. Luana só tem um vestido. Está roto e desbotado, mas não tem mais nenhum e nunca se lembra de ter vestido outro.

Vai para o seu semáforo...

Os carros passam no verde, param no vermelho, passam no verde, param no vermelho...
Verde, vermelho, verde, vermelho.
Verde espera, vermelho pede, verde espera, vermelho pede...
Espera, pede, espera, pede...
Vermelho... 'Uma moeda por favor, tenho fome'. Verde, correr para o passeio.
'Uma moeda por favor' - nem a janela se abre...
'Uma moeda por favor' - um palavrão de reposta...
'Uma moeda por favor' - este deu, mas é pouco, muito pouco...
'Uma moeda por favor'

O sol aperta, é meio dia. Luana tem sede, tem muita sede...

Vermelho... 'Uma moeda por favor, tenho sede' - 'Toma lá, bebe' - ganhou a manhã, deram-lhe uma garrafa de plástico quase cheia de água. Luana bebe. Bebe tudo. Tinha sede, tinha muita sede...

Está cansada, vai para a sombra. Tem a barriga vazia. Ainda não comeu nada. Só tem uma moeda, não dá para comprar um pão.

Deita-se no chão, exausta. Adormece...

Acorda quando um rapaz lhe mexe na mão e lhe rouba a moeda. Ficou sem nada. Maldito rapaz...

Volta ao semáforo.

Vermelho... 'Uma moeda por favor, tenho fome'. Verde, correr para o passeio.
'Uma moeda por favor' - nem a janela se abre...
'Uma moeda por favor' - um palavrão de reposta...
'Uma moeda por favor'
Nada! Ninguém dá nada...

Resolve voltar. Amanhã terá mais sorte...
Caminha de regresso ao seu abrigo, pela estrada de pó. Tem um olhar triste e cansado.
Deita-se na sua caixa e adormece ao som do ruído ensurdecedor dos carros na ponte...

Luana tem 10 anos. Vive em Luanda.

Texto de minha autoria, escrito para a Fábrica de Histórias

sexta-feira, 29 de maio de 2009

A menina Laura


A menina Laura nasceu num dia de Maio de 1942 numa pequena vila do interior alentejano. Filha do mestre Quim Sapateiro e da menina Maria do Quim, sim, porque por essas bandas as mulheres são todas meninas, a pequena Laura teve uma infância cheia de atenções e mimos dos seus pais. Nada de muitos luxos. O mestre Quim não era nem nunca foi rico, pelo menos do ponto de vista financeiro.

A menina cresce, vai à escola mas completa apenas a quarta classe segundo o que era habitual naquela altura, pelo menos no seio das famílias mais pobres. Não foi, no entanto, o facto de não ter continuado os estudos que fez dela uma pessoa menos inteligente ou menos pronta para enfrentar a vida que tinha pela frente.

Já uma mulherzinha, Laura aprende a bordar com a menina Amália que por sua vez tinha aprendido com uma senhora da Madeira. Aprendeu depressa e bem a arte do bordado mas, curiosamente, não foi nesta altura da sua vida que mais uso dela fez.

Mais uns anos passam e a menina Laura começa a interessar-se por um rapaz meio traquinas que andava já há uns tempos a fazer-lhe olhos bonitos. Havia, no entanto, um problema. A menina era filha do mestre Quim sapateiro e o rapaz filho do senhor Alberto Grilo, um dos homens mais ricos da terra.

O amor, felizmente, venceu e a menina Laura casou com o menino Zé Joaquim num dia de Abril de 68.

Logo após o casamento, começam os problemas financeiros do Sr. Alberto Grilo que é obrigado a encerrar vários dos seus negócios e a despedir muitos dos seus funcionários. Os membros da família têm que arregaçar mangas para salvar o que resta. A menina Laura e as outras mulheres da família Grilo ficam com o trabalho ingrato de cuidar do aviário. Limpar e alimentar os frangos eram as suas tarefas diárias. Quem na altura pensou que Laura casara por dinheiro, imediatamente verificou que tal não poderia estar mais longe da realidade. O afinco com que ajudou a família Grilo era a maior prova de amor que Laura poderia dar ao seu marido.

É nesta época de luta e dificuldades, que Laura tem o seu primeiro filho ao qual é dado o nome do seu sogro, Alberto, segundo a tradição da família Grilo que, chama "Alberto" a todos os primeiros filhos dos casais.

Quatro anos mais tarde nasce uma menina a quem e dado o nome de Alexandra. Nesta altura os problemas financeiros da família Grilo estão já mais controlados e Laura não necessita trabalhar.

Laura e Zé Joaquim levam muito a sério a educação dos seus dois filhos. Laura, mais presente no dia-a-dia, é uma mãe amiga e carinhosa, mas sabe impor respeito e quando os meninos se portam mal, levam com um sapato no rabo. A relação que tem com os dois é, no entanto, franca e aberta e baseada na confiança mútua. Uma forma de educar diferente do que era habitual na altura e que ainda hoje se reflecte no relacionamento com tem com os filhos.

Desenganem-se, os que pensam que Laura nesta altura da sua vida apenas cuidava da casa, do marido e dos filhos. A menina-mulher tinha, entretanto aprendido alguns conceitos básicos de enfermagem e quase todos os dias ao fim da tarde saia de casa para dar injecções ou fazer curativos em pessoas doentes. Durante o dia, os doentes que se podiam deslocar passavam em sua casa para receber este tipo de cuidados. Laura raramente cobrava dinheiro a estas pessoas. A uns porque eram pobres e a outros porque eram amigos. No entanto, a recompensa vinha sempre mais tarde e em géneros. Ovos, galinhas, patos, borregos, legumes e tantas outras coisas que valiam bem mais que o dinheiro que cobrasse.

É com muita alegria que Laura recebe uma proposta de trabalho para auxiliar de Médico, numa fábrica de lacticínios. Trabalha apenas umas horas durante a manhã, mas o dinheiro que ganha sempre ajuda nas despesas da casa. Este foi talvez um dos períodos mais felizes e intensos da sua vida. Conheceu muita gente e fez muitos amigos. Laura tem uma aptidão inata para lidar com as pessoas e teria sido uma excelente enfermeira se tal oportunidade lhe tivesse sido dada.

Os filhos crescem, são bons alunos e não dão preocupações. Laura, embora tenha muito orgulho neles, nunca os recompensa nos finais de ano escolar. Porquê? Porque os filhos devem estudar para se realizarem pessoalmente e não para serem recompensados materialmente por isso.

É com alguma tristeza que vê Alberto partir para longe afim de iniciar os seus estudos universitários. No entanto, Laura é forte e quando o filho sente saudades de casa, faz tudo para não se comover e para lhe dar força para continuar. Uns anos mais tarde parte Alexandra com a mesma finalidade. A casa fica mais vazia, mas Laura não se deixa ir abaixo. Precisa de ocupar o seu tempo, nunca foi mulher de estar parada em casa a tratar do marido, com quem mantém um óptimo relacionamento.

É por esta altura que vê surgir a oportunidade de colocar em prática os seus conhecimentos na área do bordado. A convite de uma entidade pública local, passa a ser monitora de um curso de bordados. Mais uma vez as capacidades de Laura são postas à prova. Desta vez tem que ensinar e ser "professor" não é tarefa para qualquer um.

O primeiro curso corre muito bem, ou não fosse Laura uma excelente comunicadora. Surgem convites para o segundo, o terceiro, o quarto... tantos que já se perdeu a conta. Ainda hoje mantém esta actividade, passados que estão mais de quinze anos.

Como qualquer história de vida, também a história de Laura conta com alguns momentos menos bons:a morte repentina do sogro, o cuidar da sogra acamada durante os últimos meses de vida, a doença do marido que o levou à portas da morte e a morte do pai, são só alguns exemplos.

Laura, enfrentou todas estas situações com tristeza mas determinação. Ela comanda, decide, fala e resolve.

Em 2007 toda a família fica em pânico quando após uma cirurgia sem importância Laura fica às portas da morte. Nova cirurgia e as coisas ficam resolvidas. Laura é forte e não se deixa vencer assim às boas.

Hoje em dia, esta Mulher, continua a viver na pequena vila alentejana onde nasceu. Mantém um casamento de mais de quarenta anos com o seu Zé Joaquim e cuida mãe e da cunhada Isabel que é como se fosse sua irmã. Laura revelou-se uma verdadeira Matriarca e é o pilar da família.

Pediram-me para olhar para uma caixa com lápis de cor e escrever uma história sobre "a cor dos meus dias". Lembrei-me imediatamente da menina Laura. Ela é, sem dúvida, a cor dos meus dias. Meus, e de muita gente...

A menina Laura é também a minha mãe e a minha melhor amiga.



Texto de minha autoria, escrito para a Fábrica de Histórias

terça-feira, 19 de maio de 2009

O Mestre Quim Sapateiro

Avô

Se fosses vivo, farias hoje 93 anos. Há poucos meses, estive à conversa com a minha mãe, tua única filha, e falámos de ti, da tua vida, da tua morte, do que nos deste e das saudades que sentimos de ti. Não foi uma conversa triste, pelo contrário, relembrámos alegremente o que foste e continuas a ser para nós. Um verdadeiro herói.

Deixo aqui um breve resumo do que foi a tua vida, se bem que a tua história e as histórias que me contavas dariam para escrever um livro.

O Sr. Joaquim Antunes Varela Prates, nasceu no dia 14 de Novembro de 1915. Não teve uma infância particularmente feliz, uma vez que perdeu o pai quando tinha apenas 8 anos. O seu irmão mais velho, o Francisco, passou a ser, aos 18 anos, o homem da casa.

Foi com o Francisco (o Mestre Chico Antunes) que Joaquim aprendeu a sua profissão - Sapateiro.

Todos os irmãos (homens, entenda-se) aprenderam esta "arte" e todos trabalharam juntos durante muitos anos. Com dinheiro que conseguiram amealhar compraram 6 moradias, uma para cada um dos irmãos (quatro homens e duas mulheres). Curiosamente as moradias foram registadas em nome da mãe e só depois da morte desta, foram repartidas por todos.

O Joaquim era o irmão mais novo e foi, por isso, o último a deixar de trabalhar. E trabalhou muito. Fazia sapatos e botas (alentejanas) e percorria longos quilómetros de bicicleta ao frio e à chuva para fazer as suas entregas. Sim, porque naquele tempo as entregas eram feitas ao domicílio. Saía de casa de madrugada e só chegava já a noite ia alta. No Inverno trazia as mãos geladas com o frio e a única coisa que pedia a sua mulher é que lhe preparasse água quente para aquecer as mãos. Sempre pediu muito pouco para sim e sempre deu muito aos outros.

Na véspera da feira-franca, o Mestre Quim Sapateiro quase não se deitava, porque todas as pessoas da terra queriam os sapatos engraxados. A feira era o maior evento social do ano no Ervedal, a vila alentejana onde sempre viveu.

Trabalhou até aos 80 anos e nem mesmo quando decidiu parar mostrava sinais de cansaço.


Parece pequena a tua história da vida, avô, mas no entanto devo-te muito da minha formação como pessoa. Foste sempre para mim um modelo de trabalhador íntegro e dedicado e sempre me ajudaste a seguir em frente e a chegar até aqui.

Curiosamente estava contigo quando resolveste adoecer o que levou a que ficasses acamado durante mais de um ano.

Estava também contigo no dia da tua morte. Por pura coincidência, uma vez que vou ao Alentejo duas ou três vezes no ano e por períodos relativamente curtos.

Resolveste esperar por mim para para morrer...

Obrigado por tudo Avô. Gosto muito de ti.

Texto de minha autoria, escrito no Outras Escritas a 14 de Novembro de 2008 e agora adaptado para a Fábrica de Histórias

sábado, 16 de maio de 2009

O vizinho aleijado

Diogo de Mascarenhas é um jovem de trinta anos bem sucedido pessoal e profissionalmente. A ascensão meteórica que fez na empresa onde trabalha, conseguda à custa do seu trabalho e de alguns atropelos aos colegas, é vista com inveja por parte de uns e com ódio e desprezo por parte de outros. É um vencedor e é com esse espírito que encara a sua vida.

Tantos sucessos em tão tenra idade, fizeram de Diogo um homem egoísta e egocêntrico e isso fez com que os seus amigos se começassem a afastar dele. Já não conseguiam ouvir Diogo falar dos seus sucessos e julgar-se muito melhor do que eles. Tinham saudades do Diogo mais humilde e companheiro...

A este afastamento dos amigos, os verdadeiros amigos, Diogo não dava a mínima importância. "Não me merecem" - pensava - "Eu sou bastante mais interessante que eles. Se se afastam, arranjo outros".

Arranjava mesmo. Conhecia muita gente, tinha boa aparência, conduzia um bom carro, vivia num apartamento na melhor zona da cidade e, mais importante que tudo, tinha um emprego que lhe proporcionava um belíssimo ordenado ao fim do mês.

No meio de tanta agitação, a vida de Diogo começou a revelar-se oca e sem sentido. Os seus dias resumiam-se às horas que passava no trabalho e a saídas à noite com gente bonita e rica, mas fútil.

Havia, no entanto, uma paixão que nunca deixou de lado. O xadrez. Jogava xadrez desde muito pequeno. Aprendera com o seu avó e cedo lhe começou a ganhar praticamente todas as partidas. No meio social em que se movia actualmente, o Xadrez era considerado um jogo chato, que podia demorar muito tempo e que era sempre igual. Algo sem interesse que não se comparava a uma boa festa de sábado à noite em casa de uma das suas fúteis amigas.

Deixou de ir ao clube de xadrez que já o seu avô havia frequentado. Tinha vergonha de dizer aos seus amigos que jogava xadrez num clube decrépito e cheio de gente velha. Não deixou, no entanto de jogar. Usava a Internet. Não precisava de conhecer os parceiros com quem jogava e ninguém o conhecia também a ele. Mantinha desta forma o anonimato e jogava com gente de todo o planeta.

Curiosamente ao jogar xadrez Diogo sentia-se como em nenhuma das festas que tanto frequentava. Ali, em frente a um ecrã de computador a jogar com alguém que não conhecia, não sentia necessidade de afirmação pessoal nem tinha que ser melhor que ninguém. Jogava humildemente o jogo do seu avô. Gostava particularmente de um jogador português cujas tácticas de jogo eram muito semelhantes às suas. Acabavam por ter grandes conversas através do computador enquanto jogavam o seus jogos.

Quando o jogo acabava voltava a vestir a pele de jovem bem sucedido e arrogante. Andava agora particularmente chateado porque o seu novo vizinho do andar da frente, que era um aleijado de cadeira de rodas, lhe passava o tempo a pedir que fizesse menos barulho quando tinha amigos em casa. Repugnava-o aquela figura muito franzina e sem cor que lhe batia à porta nos dias de festa.
Diogo passou a contrariar esse senhor, colocando a música cada vez mais alta e fazendo cada vez mais barulho nas suas festas. As noites terminavam quase sempre com a polícia a bater-lhe à porta a avisá-lo que tinha sido apresentada queixa pelos vizinhos. Pagava as multas mas não mudava de atitude. "Aquele aleijado tem que sair daqui" - pensava.

Um dia quando saia de casa para trabalhar, Diogo verificou que o seu vizinho estava a sair ao mesmo tempo que ele. Ainda tentou voltar atrás, mas como já se tinham visto, essa seria uma atitude de fraqueza da sua parte. Saiu e chamou o elevador sem sequer olhar para o lado. Enquanto desciam, ficou por detrás da sinistra figura e sem que fosse notado começou a observar. O vizinho devia ter mais ou menos a sua idade e parecia ser uma pessoa independente, apesar da sua deficiência. Tinha algo no colo que Diogo não conseguia perceber bem o que era. Ao sair, porém, conseguiu olhar novamente e apercebeu-se que era um tabuleiro de xadrez. "Como é que este aleijado pode jogar xadrez?" - pensou com a sua atitude arrogante e discriminatória.

Nessa mesma noite após jogar uma partida no computador com o seu amigo português, Diogo conta-lhe em tom de brincadeira as suas aventuras com o seu vizinho da frente que afinal aparentemente também sabe jogar xadrez. O amigo fica em silêncio o que leva Digo a pensar que talvez tenha perdido o acesso à Internet. Passados uns minutos há uma resposta muito lacónica. Aparecem no seu monitor as seguintes palavras: "Diogo, eu sou o teu vizinho aleijado".

Ainda pensou que seria brincadeira, mas depois começou a ver que poderia muito bem ser verdade. Num acto impulsivo, saiu de casa e bateu à porta do vizinho. "Olá Diogo, eu sou o Carlos, o teu vizinho deficiente motor, a quem tu chamas aleijado e de quem tanto gostas no mundo do xadrez virtual. Não julgues as pessoas pela sua aparência e nem te consideres a melhor pessoa do mundo. No xadrez, a tua paixão, eu sou tão bom ou melhor que tu".

Diogo só conseguiu pedir desculpas e voltou a entrar em casa. Estava envergonhado. Via agora o vizinho com outros olhos. O xadrez tinha-os unido, mesmo sem ele se dar conta.

Voltaram a jogar muitas vezes no mundo virtual, mas a pouco e pouco quebraram o gelo e passaram a jogar ora em casa de um, ora em casa de outro.

Hoje em dia o Afonso, o aleijado, é um dos melhores amigos de Diogo.

Texto de minha autoria, escrito para a Fábrica de Histórias

sábado, 9 de maio de 2009

A moeda mágica (conto infantil)

Era uma vez uma menina chamada Olga que vivia num país de África, daqueles países muito pobres onde os meninos são muitos e a comida nem sempre chega para todos. Os pais de Olga tiveram muitos filhos, alguns dos quais Olga, que era a mais nova, nunca conhecera. Uns viviam na América e outros na Europa.

Olga vivia feliz na sua pequena aldeia. Ia à escola durante a manhã, por lá almoçava, e só regressava a casa no final do dia, depois de longas horas de brincadeira com os meninos seus amigos. A aldeia ficava perto da praia e quase todos os dias as brincadeiras terminavam com um banho de mar. Um mar muito azul e transparente com uma água muito quentinha.

Havia na aldeia uma casa muito grande e também muito antiga, que era habitada por um casal já com uma certa idade. O casal tinha vindo de um país europeu distante. Olga ouvia falar da Europa, mas não entendia bem do que se tratava. Sabia que era uma terra que ficava muito longe da aldeia e onde tudo era diferente.

A casa grande era linda e Olga quando passava perto da entrada a caminho de sua casa, ficava sempre uns minutos a observar intrigada as janelas, as portas, os jardins enormes e cheios de flores e os criados que circulavam em redor da casa, sempre com um ar apressado. Imaginava como seria o interior de tão grande casarão. "Como será que não se perdem dentro de uma casa tão grande?"

Um dia, quando Olga passava junto ao portão de entrada da casa grande, reparou que o Senhor da casa caminhava pela rua e se dirigia para o portão, certamente de regresso do seu passeio da tarde. Olga nunca falara com aquele Senhor que tinha cara de mau e uma pele muito clara e muito estranha. Sempre que isto acontecia, escondia-se atrás de umas plantas, mas ficava à espreita. Naquele dia, porém, aconteceu algo inesperado. Quando o Senhor colocou a mão no bolso para tirar o lenço e refrescar-se, uma moeda caiu-lhe do bolso e veio a rolar quase até ao local onde Olga estava escondida. Ficou aflita. Se o Senhor fosse buscar a moeda certamente que a descobriria escondida. Quase sem respirar, verificou que, após olhar em volta, o dono da casa grande desistiu de procurar a moeda e entrou no portão.
Passaram uns minutos e, como não aparecia ninguém, Olga pega na moeda e corre para casa.

Não disse aos pais nem aos irmãos o que se tinha passado. Pensou mostrar a moeda aos amigos. Era uma moeda muito bonita, cor de prata. Resolveu, no entanto, guardá-la sem a mostrar a ninguém. Tinha medo, afinal aquela moeda não era dela, era do Senhor da casa grande.

Passaram uns dias e Olga guardava o seu tesouro na pequena caixa de lápis que usava na escola. Começou, no entanto, a ficar preocupada. Sabia que tinha que devolver a moeda ao seu dono, mas não sabia como. Tinha medo. Podia seguir o Senhor num dos seus passeios da tarde, mas tinha medo dele.

Um dia, tomou coragem e depois das brincadeiras na praia com os seus amigos, resolveu tocar o sino do portão da casa grande. Estava com muito medo e quase não chegava ao puxador do sino, mas depois de um esforço, lá conseguiu que o sino emitisse um breve som. Enquanto não abriam o portão, Olga ajeitou os calções e a camisola e esperou. Apareceu um dos criados da casa que não conhecia e que, por isso, devia ter vindo de outra aldeia. A medo, mas com um ar decidido, Olga disse que precisava de falar com o Senhor da casa grande. À pergunta sobre o que ia dizer ao Senhor, respondeu que tinha uma coisa importante para lhe dar.

O criado, achando graça à criança, deixou-a entrar, pensando à partida que se tratava de uma brincadeira e que a pequenina deveria ter fome. Pensou levá-la à cozinha e dar-lhe um pouco de pão.
Enquanto caminhavam pelo jardim, a Dona da casa apareceu e perguntou o que fazia ali uma menina tão bonita. Olga ficou envergonhada. Nunca lhe tinham dito que era bonita. A Senhora sim, era muito bonita e estava muito bem vestida. "Venho devolver ao Senhor da casa grande, uma coisa que ele perdeu", disse a medo.
Ao ver o ar tão decidido da menina, a Dona da casa, que lhe achou uma certa graça, mandou chamar o marido. Quando o Senhor chegou, Olga tremeu de medo. Teve vontade de fugir, mas não o fez. Tinha que devolver a moeda. "Então o que tens tu que eu perdi?", perguntou o Senhor. "Tenho esta moeda" disse abrindo a mão.
Nessa altura o Senhor lembrou-se que realmente tinha perdido uma moeda há uns dias quando entrava para casa. Sorriu para a menina e perguntou-lhe porque razão ela não tinha ficado com a moeda. "A moeda não é minha, tinha que a entregar".

Os donos da casa olharam um para o outro com um ar admirado, afinal, não esperavam aquela atitude daquela menina.

"Obrigado por teres vindo devolver a minha moeda. Eu aceito, mas só se tu fizeres uma coisa por mim", disse o Dono da casa grande. Olga, agora um pouco mais à vontade perguntou o que teria de fazer.

"Todos os dias, quando vieres da escola, tocas no sino do portão e vens lanchar com a Senhora. Ela passa os dias muito sozinha e tu podes fazer-lhe um pouco de companhia. Aceitas?", disse o Senhor da casa. Olga não sabia o que dizer, mas a Senhora era tão bonita e tão simpática que não se importava nada de lhe fazer companhia. Resolveu dizer que sim, mas que teria de pedir autorização à mãe a ao pai.

Com a autorização concedida, passou a lanchar todos os dias com a Senhora. Lanchavam no jardim e depois ficavam um pouco a conversar sobre a escola e os amigos de Olga. Quando havia tempo, faziam juntas os trabalhos de casa.

Olga viveu feliz naqueles seus anos de infância. Tinha aprendido que a honestidade que teve ao devolver uma moeda que alguém tinha perdido, tinha feito com que ganhasse uma grande amizade. A moeda era mágica!

Que a história de Olga sirva de exemplo a todos os miúdos. E aos graúdos também...

Texto de minha autoria, escrito para a Fábrica de Histórias

sexta-feira, 3 de abril de 2009

João e o Mar...

"O mar, de um azul profundo, batia nas rochas num ondular perfeito. O sol, quase posto, inundava com os seu raios dourados a areia da praia..."

João fecha o livro com uma lágrima no canto do olho. Tem 10 anos, adora ler e... nunca viu o mar. Gosta de livros de aventuras, de piratas, de marinheiros. Gosta de Júlio Verne e devorou as "20 000 Léguas Submarinas", sempre sonhou comandar o "Nautilus" e... nunca viu o mar.

João nasceu no meio de uma família pobre no interior de Portugal, num tempo em que as pessoas não podiam falar de tudo. Havia uns senhores de fatos escuros e carros pretos que levavam os homens que ousavam falar de uma coisa a que chamavam "liberdade" e que o João nunca entendera bem o que é. Alguns desses homens, amigos de seu pai, nunca mais tinham voltado à aldeia. João imaginava que teriam partido em busca da "liberdade" de que tanto falavam. Mal sabia o João...

"Avô, o que é a liberdade?"
"Porque é que o Zé da Ti Joana, foi no carro preto e nunca mais voltou? Foi à procura da liberdade?"

Todas estas perguntas ficavam para o João sem resposta. Mas na sua mente o conceito de liberdade estava relacionado com o mar. Porquê? Porque nos livros que lia os marinheiros e os piratas viviam livremente, navegando por mares infinitos ao sabor dos ventos e das correntes.

Mas o João... nunca viu o mar.

"Avô, como é o mar? É azul, é verde? É grande?"
"Avô, o mar não tem fim? Porque não chega o mar aqui à aldeia?"

Tantas perguntas e tão poucas respostas. O avô, homem rude e de poucas falas, é com quem o João mais gosta de estar, depois de sair da escola e enquanto os seus pais não chegam exaustos, do trabalho no campo. João fala muito e o avô fala pouco. Entendem-se, por isso, muito bem.

"João, não faças tantas perguntas e vai dar milho às galinhas e aos patos" - é muitas vezes a resposta do avô.

João é um sonhador, sonha com a "liberdade" que não sabe bem o que é, e sonha com o mar de que falam os livros que o professor Martins lhe empresta. Sim, porque se não fosse o professor Martins, nunca teria lido um livro.

"Senhor professor, como é o mar?"
"É grande? Azul ou verde?"

"O mar, João, o mar tem muitas cores. É azul, é verde, e de ouro ao pôr-de-sol..."

"Um dia vou ver o mar. Vou ser marinheiro e nunca hei-de voltar a terra..."

João cresce, torna-se um homenzinho. Tem jeito para os estudos e fez a quarta classe sem problemas. Com bastante sacrifício dos pais, foi para o liceu na cidade mais próxima e terminou o sétimo ano com distinção. Mas, nunca viu o mar...

Um dia, pouco tempo depois de ter completado 18 anos, chega a sua casa uma "Guia de Marcha". Está na altura de cumprir o seu dever para com a Pátria e partir para o serviço militar. São precisos homens para a Guerra do Ultramar e João é forte e sente vontade de cumprir o seu dever. Mal sabe o João...

Depois de uns meses de tropa, passados quartel de uma cidade próxima da sua aldeia, João recebe a notícia de que terá que partir para o Ultramar. Vai para Angola, mas isso não lhe importa. João tem 18 anos e vai finalmente ver o mar... Que lhe importa a guerra? Não tem medo. Vai ver o mar...

O dia chega. Parte de comboio para Lisboa. Depois a pé para o cais. Vê o rio! É grande, mas não é o mar! O barco. Confusão... Tanta gente. Uns partem, outros ficam... As mãe choram...

João, começa a compreender que há algo naquelas despedidas que não está certo. Sabe que algures nos campos da sua aldeia também a sua mãe chora pela sua partida.

"Uma mãe nunca deveria ter que chorar pelo seu filho" - pensa João enquanto embarca. Fica triste. Tão triste que até se esquece que vai ver o mar.

Ao passar a barra do Tejo o mar surge finalmente. Não é verde nem azul. É cor de chumbo! Chove muito! João chora. Sente saudades de todos e não sabe o que vai encontrar do outro lado do mar, que afinal parece não ser nem verde, nem azul!

Voltou dois anos mais tarde, são e salvo para alegria de todos. Lutou numa guerra estúpida e sem sentido, mas que finalmente tinha acabado. Mudou muito. Tornou-se um homem. Compreendeu quem eram os senhores de fato escuro que andavam nos carros pretos. Compreendeu o que era a liberdade...

Uma coisa, no entanto, não mudou no João. A sua atracção pelo mar, que, embora se lhe tenha apresentado cinzento na primeira vez que o viu, depressa se lhe mostrou de todas as outras cores e com todos os seu encantos.

João vive hoje em Itália. É comandante de um dos maiores navios de cruzeiro do mundo... Vive do mar e para o mar. É feliz! Ainda lê Júlio Verne...

Texto de minha autoria, escrito para a Fábrica de Histórias

terça-feira, 24 de março de 2009

Londres, 13 de Agosto de 2101

Jorge chega a casa depois de mais um dia de trabalho estafante. Estaciona o veículo de transporte e olha em volta para um jardim completamente seco. Vive naquela casa há mais de quarenta anos, mas não consegue habituar-se ao seu jardim seco. Desde 2086 que a água começou a ser racionada. Primeiro só durante umas horas por dia, geralmente durante o horário de trabalho, mas depois os períodos de racionamento foram aumentando e hoje em dia o abastecimento de água está disponível apenas uma hora por dia. Entre as 7 e as 8 da manhã. Dá para tomar um duche, não dá, evidentemente para beber. Água potável, só mesmo nos estabelecimentos próprios e a um preço cada vez mais elevado.

Ao subir a escada que conduz à porta de entrada, Jorge, descendente de portugueses que partiram para Londres quando ainda era uma criança, recorda o seu jardim de outros tempos, florido e verde, com água abundante, sistemas de rega automática que ligavam e desligavam depois de analisarem as condições atmosféricas, estufas que se elevavam automaticamente quando as noites se tornavam demasiadamente frias para as suas plantas tropicais.

“É melhor esquecer” - pensa Jorge enquanto olha para a pequena câmara de vídeo, que faz um “scan” completo ao seu corpo e lhe abre a porta com um “Olá Jorge bem vindo a casa”. Tem que desligar aquela Voz Irritante que lhe dá sempre as boas vindas e que o persegue pela casa, relembrando-o dos seu afazeres diários. Jorge tem 70 anos e começa a perder a paciência para algumas destas coisas, a que costuma chamar “modernices”.

“Será que a Ana está em casa?” - pensa Jorge. Olha para o relógio, faz as contas ao fuso horário e conclui que Ana deve estar já levantada. São casados quase há 30 anos e nunca viveram juntos. Encontram-se apenas uma vez por ano, fisicamente pelo menos. “Ciberneticamente” encontram-se quase todos os dias.

- Voz Irritante, verifica se a Ana já acordou e se pode falar comigo.

Voz Irritante é o nome que Jorge resolveu dar à sua assistente cibernética que o persegue pela casa. A Voz reponde que Ana já está acordada e que podem falar.
Jorge olha para o ecrã e lá está Ana à sua espera.

-Hoje não estás com bom aspecto, já bebeste o teu copo de água? - diz Ana que está sempre preocupada com a saúde de Jorge.

- Não. Vou beber daqui a pouco, não te preocupes.

-Está bem! A água é importante, Jorge sabes disso. Como foi o teu dia?

-Quase tão rotineiro como todos os outros. Não parece haver solução para o problema da água. Conseguimos isolar uma pequena quantidade livre de qualquer contaminação, mas os custos associados ao processo são tão elevados que não nos permitem partir para produções em grande escala. Tu como estás? Pareces um pouco abatida.

- A água Jorge! É sempre a água. Por aqui quase não se consegue um litro por semana. Não posso beber um copo todos os dias...

- Não percas a esperança, minha querida Ana...

- Não perdi! Vou sair, Jorge, já estou um pouco atrasada. Adeus meu querido, uma boa noite. Falamos amanhã.

Desligam. Jorge sente-se profundamente triste. Tem saudades de Ana. Do seu corpo, dos seus carinhos e da sua presença. “Tocam-se” ao fim de semana, quando resolvem vestir os fatos cibernéticos, mas esta solução nunca lhe lhe agradou inteiramente.
Sonha com as férias que ainda estão distantes...

Perde-se nos pensamentos...e então... então tem uma ideia para mais um processo de purificação de água. Fica animado. Talvez seja só mais uma ideia que não dará em nada, mas como cientista, tem que tentar. Sabe que um dia poderá salvar o mundo.

Hoje Jorge vai dormir um pouco melhor...

Londres 13 de Janeiro de 2101 (preço de 1 litro de água potável 562,23 €)

Texto de minha autoria, escrito para a Fábrica de Histórias