Coloquei há dois dias aqui no Outras Escritas um desafio ao leitores que partilham comigo o gosto pela ópera. No post era apresentado um vídeo com a interpretação do final da cena de loucura da ópera Lucia di Lammermoor de Donizetti, pelo soprano Mariella Devia. O desafio era identificar o que tinha de especial a interpretação.
A resposta foi dada nos comentários, mas de qualquer forma, o assunto merece ser aqui apresentado.
Comecemos pelo início. Uma cena de loucura no mundo da ópera é geralmente interpretada por uma personagem feminina que por razões amorosas enlouquece. Este tipo de cenas teve o seu expoente máximo no período do belcanto (primeira metade do séc. XIX) nomeadamente nas composições de Donizetti e de Bellini. Donizetti compôs cenas de loucura para as óperas, Lucia di Lammermoor, Maria Padilla, Linda di Chamounix e Anna Bolena, e Bellini para as ópera I Puritani e Il Pirata e ainda uma cena de sonambulismo para La Sonnambula.
Como é característico das composições do período do belcanto, neste tipo de cenas, o estado de loucura é transmitido através da voz. Para além disso, e como era prática habitual na época, cada interprete aproveitava estas cenas para demonstrar as suas capacidades vocais, adicionado um conjunto de ornamentações. Globalmente, uma cena de loucura apresenta-se como um verdadeiro desafio vocal para os intérpretes.
A cena de loucura da ópera Lucia di Lammermmor (1835) é, por ventura a mais famosa e a que mais é interpretada. A ópera esteve afastada dos teatros até meados do séc. XX, mas graças a Maria Callas foi recuperada e é hoje apresentada com alguma frequência. Curiosamente foi Lucia que catapultou a carreia de Joan Sutherland em 1958. Sutherland é, na minha opinião a melhor interprete de sempre deste papel.
Mas voltemos à interpretação de Mariella Devia. O que a torna especial é o facto de a cantora interpretar toda a cena na tonalidade de Fá maior e não, como é usual em Mi bemol maior. Curiosamente, Donizetti fez a composição em Fá maior, mas isso torna a interpretação praticamente impossível para a maioria dos sopranos. Mesmo para quem tem poucos conhecimentos de teoria musical (como eu), é fácil concluir que a interpretação em Fá maior obriga a uma tessitura mais aguda que em Mi bemol maior.
Resumindo, a nota sobre-aguda no final de cada uma das árias que compõem a cena é geralmente um Mi bemol, mas no caso de Devia é um Fá (um tom acima). Este facto por ser fora do comum está documentado na Wikipedia, na página relativa à ópera Lucia di Lammermoor (ver mad scene).
Perguntar-me-ão o porquê de o compositor ter escrito e cena em Fá maior se quase nenhum soprano a consegue interpretar nessa tonalidade. A resposta está no facto de a frequência associada a uma nota no tempo em que a ópera foi composta, ser inferior à frequência normalizada para os dias de hoje. Não me alongo mais neste assunto, porque ele está para além dos meus conhecimentos de teoria musical.
Seguem-se três videos com a interpretação de Devia na tonalidade de Fá maior captada ao vivo em 1990 (chamo a atenção para as notas que coloquei no segundo e terceiro vídeos).
Início da cena da loucura. Il dolce suono
Ardon gli insensi. Lucia imagina que esta a casar com Edgardo seu amado.
Chamo a atenção para o que se passa ao minuto 4. Devia em vez de fazer o usual diálogo com uma flauta, faz uma cadenza sem qualquer suporte da orquestra. A voz fica totalmente exposta e atinge o primeiro Fá sobre-agudo (última nota antes da entrada da orquestra)
Spargi d'amaro pianto. Final da cena de loucura, com mais agitação. Segundo Fá sobre-agudo no final.
A identificação das notas pode ser feita através da utilização deste piano virtual.
Mariella Devia não terá interpretado a cena da loucura em Fá maior muitas vezes. Nos vídeos seguintes a cantora faz a interpretação na usual tonalidade de Mi bemol maior.
Cena da loucura interpretada na tonalidade de Mi bemol e da forma que se tem tornado usual. Estava gravação do Scala de Milão foi efectuada em 1992 e está disponível em DVD.
Independentemente da tonalidade, Mareilla Devia é uma interprete extraordinária de Lucia di Lammermoor. Este terá sido o papel que a cantora interpretou mais vezes durante a sua longa carreira. Em 2006 cantou Lucia pela última vez, no Scala de Milão. Terá afirmado na altura que deixava de cantar esta ópera não por questões vocais, mas porque não tinha mais nada a acrescentar à interpretação.
Infelizmente nunca ouvi Devia a interpretar Lucia di Lammermoor ao vivo. No entanto continuo a aguardar com expectativa a Anna Bolena de Barcelona.
Dedico este post ao FanaticoUm do blogue Fanáticos da Ópera, ao Mário do blogue O Livro de Areia e ao José Quintela Soares do blogue Opera per Tutti.
Excelente post, como sempre.
ResponderEliminarFico grato pela dedicatória.
Um abraço.
Fascinante, de facto, sobretudo aquele trecho de voz sem acompanhamento na parte 2.
ResponderEliminarNão deve perder a Mariella sempre que possa, Alberto. Eu estava longe de a imaginar capaz de ir tão longe. Parece bem melhor do que naquela récita a que o Alberto assistiu e de que aqui deu conta.
E belo post, mais uma vez :) Obrigado pela dedicatória.
Caro Alberto,
ResponderEliminarComeço por lhe expressar a minha gratidão pela sua simpatia em me dedicar este "post", um dos melhores que li desde que acompanho o seu blogue. Eu, um leigo em música, muito aprendi com esta sua clara explicação. Ainda vou rever várias vezes os videos que apresenta, dado precisarem de ser ouvidos com atenção, para além do enorme prazer que é ouvir partes de uma das minhas óperas favoritas.
Dentro de poucos meses, iremos ver Natalie Dessay neste papel e confesso que as minhas expectativas são grandes, dado o apreço que tenho pela cantora.
A última vez que vi ao vivo a Lucia foi com a Anna Netrebko e, confesso, fiquei deveras impressionado! Por favor não considere isto uma provocação, pois sei que não aprecia esta cantora, mas fez uma Lucia que me impressionou muito.
Mais uma vez muito obrigado por tudo.