quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Anna Bolena (Gaetano Donizetti) - MET HD Live

No passado dia 15 de Outubro assisti na Gulbenkian a uma récita da ópera Anna Bolena de Gaetano Donizetti (libretto de Felice Romani) transmitida em HD vídeo directamente no MET de Nova Iorque.

Este foi o meu primeiro contacto com o MET HD Live e confesso que na generalidade fiquei satisfeito, embora considere que a experiência está longe da que se vivencia num teatro de ópera. Em primeiro lugar a ópera em "filme" possibilita um visionamento mais próximo e "íntimo" com os cantores, facto que considero positivo, mas que reconheço poder ser uma desvantagem para quem assiste ao espectáculo no teatro. Os movimentos no palco de um grande teatro como é o MET devem levar em consideração que há espectadores bastante afastados e devem ser, por isso, bastante largos e abrangentes, facto que não se aplica de forma alguma aos movimentos usados para filme.
No que respeita ao som, sou mais crítico. Considero que o volume dos altifalantes esteve injustificavelmente alto, prejudicando a audição e introduzindo distorções que prejudicaram a audição (para mim, foi nítida a distorção do registo agudo do tenor). Num teatro de ópera, sem microfones, os cantores não são ouvidos com tal intensidade sonora, por muito pequeno que seja o teatro, pelo que penso que uma diminuição no volume, aproximaria mais esta experiência ao que se passa na realidade e não introduziria as distorções referidas. Há, no entanto, uma vantagem: as "malfadadas" tosses são praticamente inaudíveis.

Quanto à récita em si, contou com um elenco de luxo, ou não estivéssemos a falar do MET:

Maestro: Marco Armiliato 
Anna Bolena: Angela Meade 
Giovanna Seymour: Ekaterina Gubanova 
Smeaton: Tamara Mumford 
Lord Riccardo Percy: Stephen Costello 
Enrico VIII: Ildar Abdrazakov

e a com a seguinte produção:

Encenador: David McVicar 
Cenários: Robert Jones 
Figurinos Jenny Tiramani 
Luzes Paule Constable 
Coreografia: Andrew George

A encenação de David McVicar está excelente. Embora eu aprecie algumas encenações com transposição temporal (tão comuns na Europa), considero que as encenações de época, como esta de McVicar, são bastante mais eficientes, conseguindo-nos aproximar bastante mais daquilo que o compositor e o libretista idealizaram. O que não desculpo aos encenadores é o facto de muitas vezes "inventarem" posições para os cantores que são tudo menos apropriadas à sua projecção vocal. Nada disto se passou neste caso. Os cenários, figurinos e movimentação dos cantores estiveram perfeitos.

Quanto ao elenco, gostaria em primeiro lugar de destacar a condução de Armiliato. O maestro apresenta-se regulamente no MET e é um especialista em bel canto. Demonstrou isso nesta récita, que conduziu com maestria e em perfeita sintonia com os cantores.

O coro do MET esteve excelente, sem qualquer descoordenação e com uma união de vozes que faz dele um dos melhores (ou o melhor) coros de ópera da actualidade.

Antes de falar dos principais solistas gostaria de referir que a minha apreciação está limitada pelo facto de nunca ter ouvido nenhum deles ao vivo e, por isso, desconhecer as suas características vocais em termos de projecção e volume.

Anna Bolena é um dos papéis mais difíceis do repertório de bel canto. A ópera é longa e o soprano está em palco grande parte do tempo. Culmina com uma das cenas mais longas e de maior dificuldade técnica que conheço.
Quando há uns anos ouvi dizer que Anna Netrebko interpretaria Anna Bolena fiquei deveras surpreendido, porque nunca pensei que a cantora alguma vez o tentasse fazer. Como sabem, tenho algumas reservas quanto a Netrebko e não a acho uma "belcantista" porque lhe faltam técnica (a nível da respiração), leveza e agilidade vocais (para além de não ter o Mi bemól sobre-agudo, que, não sendo necessário é sempre uma cereja no cimo do bolo).
Apesar destas reservas da minha parte, considero que Netrebko interpretou uma extraordinária Anna Bolena. A voz está mais escura, o que se adapta bem á linha vocal do papel e para além disso, o timbre está seguro e constante. Do ponto de vista cénico a cantora é uma actriz exímia, talvez a melhor da actualidade.
Dentro de um nível de interpretação de qualidade superlativa ao longo de toda a récita, gostaria de salientar que, na minha opinião, houve "duas Netrebkos". Uma Netrebko mais comedida e a poupar-se vocalmente no primeiro acto e uma Netrebko absolutamente fantástica no segundo acto. Prova disto, é o facto de a cabaletta do primeiro acto ter sido encurtada para metade e de no ensamble que finaliza este acto a cantora deixar de cantar no final para depois interpolar um ré sobre-agudo, por sinal, de muitíssimo boa qualidade. Devo referir que tudo isto acontece de forma quase imperceptível e sem prejudicar a obra do ponto de vista vocal ou cénico.
No segundo acto, Netrebko protagonizou os melhores momentos de toda récita. O dueto com Giovanna Seymour (Gubanova) foi extraordinário, agora já com Netrebko sem quaisquer economias de esforço e perfeita cénica e vocalmente. No entanto, o que foi para mim o momento mais emocionante da noite, foi a interpretação da ária Al dolce guidame, que faz parte da grande cena final. Aqui Netrebko "mostrou-me" que é efectivamente uma excelente cantora e que tem o seu instrumento vocal totalmente dominado, com um legatto e uns pianissimi praticamente perfeitos. Para além de tudo isto a cantora no final da ária  faz a interpolação de um dó sobre-agudo em piano que me fez "colar à cadeira". A cabaletta final, Coppia iniqua, embora muito bem interpretada, não teve e mesma qualidade, principalmente ao nível das passagens de coloratura mais exigente.

O papel de Giovanna Seymour foi interpretado pelo mezzo-soprano Ekaterina Gubanova. A cantora esteve muito bem durante toda a récita. Possui uma voz de belo timbre e com corpo. Os agudos, embora afinados, pareceram-me um pouco nervosos, mas nada que pusesse em causa a qualidade da interpretação. No dueto com Netrebko, Gubanova correspondeu do ponto de vista vocal, embora Netrebko seja imbatível do ponto de vista cénico. Na ária do segundo acto, a cantora demonstrou uma vez mais que é detentora de uma bela voz, mas, com pena minha, a cabaletta não teve repetição.

Ildar Abdrazakov, baixo, interpretou Enrico VII. O cantor é detentor de uma bela voz, com bastante corpo nos registos grave e agudo. Notei-lhe ao princípio uma certa dificuldade nas passagens mais rápidas no registo grave, que rapidamente desapareceu (penso que se terá devido ao facto de voz se encontrar ainda "fria"). Como actor Abdrazakov foi efectivamente um rei, com uma portentosa presença em palco. Este é um cantor que pretendo acompanhar com atenção.

O ponto fraco da récita foi o tenor Stephen Costello. A voz tem um vibrato rápido no registo agudo que a torna desagradável ao ouvido. Para além disso o papel de Percy tem uma tessitura demasiado aguda para o cantor e tal denotou-se na forma como se foi poupando encurtando ligeiramente o final das frases. Como actor foi bastante convincente. 
Devo fazer aqui uma ressalva para o facto de esta minha consideração poder estar errada, uma vez que foi a voz de Costello a que me pareceu mais distorcida pelo volume exagerado dos altifalantes da sala.

O mezzo-soprano Tamara Mumford interpretou muito bem a personagem Smeanton. A sua voz tem corpo no registo grave e é bastante maleável, fazendo lembrar um contralto. A cantora vestiu muito bem este papel masculino.


Globalmente considero que esta Anna Bolena foi de qualidade superlativa, com um conjunto de cantores do que há de melhor na actualidade.
Tinha planeado assistir a uma récita no MET no próximo mês de Fevereiro, mas tal não me vai ser possível. Tenho consciência que perderei um espectáculo extraordinário, mas espero ter ainda oportunidade de ouvir Netrebko a interpretar Anna Bolena.

3 comentários:

  1. Extremamente curioso como o Costello, que há uns anos era considerado o "The next big thing" pelos críticos americanos, mas não tem passado da "cepa torta". Mais um case study.

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  2. Caro Alberto,
    Ler o seu relato tendo visto a mesma transmissão é quase voltar a revê-la, mas agora com explicações técnicas que não estão ao alcance de muitos (entre eles me incluo humildemente). Concordo totalmente com a sua apreciação e tenho muita pena que não possa vir ver a Netrebko na Manon, onde ela é absolutamente excepcional.
    De qualquer forma, muito obrigado por este belo texto, o melhor que li até agora sobre o que se miu e ouviu na Gulbenkian.
    Cumprimentos musicais

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  3. @ Anónimo: Eu nunca vi (ouvi) nada em Costello que justificasse apelidá-lo de "The next big sing", de qualquer forma nos dias de hoje parece que o aspecto dos cantores começa a ser mais importante que a sua voz... Enfim. Costello deve afastar-se destas incursões no belcanto.

    @ FanaticoUm: Não mereço tal elogio, caro FanaticoUm. Vou fazendo aquilo que posso dentro do que vou aprendendo. Muito obrigado pelas suas palavras.
    Quanto à Manon, tenho que esperar para ver se há desistências. Mas vivendo longe e com passagens aéreas caríssimas quando compradas em cima da hora, não antevejo grandes possibilidades.
    Cumprimentos Musicais.

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